Não são apenas as decisões do ministro do STF e do TSE Alexandre de Moraes que têm alarmado expressiva parcela da comunidade jurídica, que aponta que ele vem violando a liberdade de expressão, a imunidade parlamentar e a separação de poderes. A conduta de Moraes fora dos autos também tem sido motivo de críticas. Na segunda-feira passada (12), após diplomar o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro participou de uma comemoração do petista na casa do advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay – famoso por defender nos tribunais superiores políticos acusados de corrupção e por ser um dos maiores combatentes da extinta Lava Jato.
A informação sobre a celebração foi revelada pelo portal UOL. Segundo a reportagem, havia cerca de 100 convidados para a confraternização pós-diplomação, que contou com um grupo musical que tocou samba. Participaram vários futuros ministros do novo governo, governadores e parlamentares aliados. Mas chamou a atenção a presença de Alexandre de Moraes e de outros dois ministros do Supremo Tribunal Federal (STF): Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli.
Além disso, a celebração teve tom político. Segundo o UOL, o presidente eleito Lula fez um breve discurso com duras críticas ao presidente Jair Bolsonaro (PL), ao ex-juiz e senador eleito Sergio Moro (União Brasil-PR) e ao ex-procurador da Lava Jato e deputado eleito Deltan Dallagnol (Podemos-PR).
Dias depois da confraternização, Moraes deu declarações públicas e tomou medidas contrárias a apoiadores de Bolsonaro. Na quarta (14), durante palestra num instituto privado de Brasília, Moraes disse, rindo, que “ainda tem muita gente para prender e muita multa para aplicar”. A declaração citava discurso anterior, de Toffoli, que citou as 964 detenções realizadas nos Estados Unidos de envolvidos na invasão ao Capitólio, em janeiro de 2021 – caso associado ao ex-presidente dos EUA Donald Trump, de quem Bolsonaro é aliado. Além disso, foi Toffoli que abriu o inquérito das fake news e deu a Moraes a relatoria do caso. Esse inquérito vem sendo usado, desde 2020, contra aliados e apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.
“Eu fiquei feliz com a fala do ministro Toffoli, porque comparando os números, ainda tem muita gente para prender e muita multa para aplicar”, afirmou Moraes, sob aplausos e risadas da plateia, formada por políticos, advogados, servidores e ministros que circulam nas Cortes da capital.
No dia seguinte (15), a mando de Alexandre de Moraes, a Polícia Federal (PF) fez uma megaoperação contra organizadores e financiadores de protestos em rodovias e quartéis contra a eleição de Lula e a atuação do TSE. Foram quatro prisões, além do cumprimento de mandados de busca e apreensão em 103 locais em oito estados e do Distrito Federal e o bloqueio de contas bancárias e de 168 perfis em redes sociais.
Integrantes da comunidade jurídica criticam Moraes
O comportamento de Alexandre Moraes (ao participar da confraternização com Lula) e suas falas durante a semana são criticadas por integrantes da comunidade jurídica porque não seriam admitidas por parte de um juiz comum.
“Uma coisa é participar de uma solenidade pública e formal com candidatos vitoriosos numa eleição. Outra coisa é participar de festinha privada em casa de advogado para celebrar a vitória de um candidato e tendo o advogado e o candidato diversas causas pendentes de julgamento”, critica um procurador consultado pela Gazeta do Povo, que pediu para não ter o nome divulgado.
“Qualquer outro juiz que tomasse essas atitudes sofreria pena severa, com certeza. Talvez uma disponibilidade, ou aposentadoria compulsória. Porque realmente essas condutas mostram situação de parcialidade”, diz o desembargador aposentado e ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo Ivan Sartori.
Várias normas reprovam condutas de magistrados nesse sentido. A lei do impeachment diz que é crime de responsabilidade um ministro do STF “proceder de modo incompatível com a honra dignidade e decoro de suas funções”. A Lei Orgânica da Magistratura (Loman) diz que juízes devem “manter conduta irrepreensível na vida pública e particular”. A Loman prevê ainda a possibilidade de punir com aposentadoria compulsória o magistrado que agir com “procedimento incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções”.
O Código de Ética da Magistratura, norma publicada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2008, detalha vários outros princípios que devem nortear a atuação de juízes. Com a finalidade de incrementar a confiança da sociedade na “autoridade moral” dos magistrados e “fortalecer a legitimidade do Poder Judiciário”, a norma também exige dos magistrados independência, imparcialidade, prudência, diligência, integridade profissional e pessoal.
Um dos deveres é “abster-se de emitir opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem”. Outro é “evitar comportamentos que impliquem a busca injustificada e desmesurada por reconhecimento social, mormente a autopromoção em publicação de qualquer natureza”. “É atentatório à dignidade do cargo qualquer ato ou comportamento do magistrado, no exercício profissional, que implique discriminação injusta ou arbitrária de qualquer pessoa ou instituição”, diz ainda o código.
Do ponto de vista disciplinar, no entanto, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que fiscaliza a conduta de todos os juízes do país, não alcança os ministros do STF. Foram os próprios ministros que decidiram, em 2005, que eles não se submeteriam ao CNJ, porque cabe ao STF julgar as decisões do órgão. “O Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o Supremo Tribunal Federal e seus ministros, sendo esse o órgão máximo do Poder Judiciário nacional, a que aquele está sujeito”, diz a decisão.
Do ponto de vista disciplinar, caberia ao próprio plenário do STF atuar como órgão corregedor de cada um de seus ministros, a partir de representações de outras instituições, como os poderes Legislativo e Executivo, Ministério Público ou Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Isso porque, antes do CNJ, o próprio tribunal do magistrado pode atuar para fiscalizar sua conduta. No caso do STF, no entanto, nunca se viu abertura de um procedimento desse tipo.
O professor Adilson Dallari, doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP e crítico das decisões de Moraes, diz não haver dúvida de que suas atitudes fora dos autos, em tese, levariam a punições. “Mas se a Constituição está escancaradamente sendo descumprida, quem vai se preocupar com infração disciplinar e ética”, diz, em relação a decisões do ministro em seus inquéritos.
Dallari observa que nem sequer críticas são feitas a Moraes pelos outros ministros ou advogados que costumam atuar no STF em razão do corporativismo interno e do clima de compadrio. Isso torna improvável que possam prosperar pedidos para afastar algum ministro por suspeição, quando ele não pode julgar por ser amigo íntimo ou inimigo de qualquer das partes ou de seus advogados, ou quando for interessado em julgamento em favor de uma parte.
“Brasília é uma coisa complicada. Nos eventos sociais, todo mundo se mistura. Essa festinha [que reuniu Lula e Moraes] é um exemplo. Kakay, que já foi de bermuda ao STF, fez essa comemoração porque sabe que nunca vai acontecer nada”, diz Dallari.
Dallari defende que, assim como em outros países, os tribunais superiores deveriam ficar localizados em outra cidade, não em Brasília. Ou seja, teriam de estar mais afastados do Congresso e do governo – o que evitaria que seus integrantes frequentem os mesmos ambientes e estabeleçam relações de proximidade. “Sou favorável a esse deslocamento. Pelo menos o Judiciário fica fora do centro do poder. Porque poderes são Executivo e Legislativo. Todo poder emana do povo, que o exerce através de seus representantes eleitos. O Judiciário é órgão e não poder, não é representante do povo”, afirma o professor.
Senado resiste a investigar ministros do STF
Se a fiscalização dos ministros do STF e de outras cortes superiores dificilmente vai surgir de dentro do Judiciário, a saída estaria no Senado – que tem esse papel institucional. Aos senadores, por exemplo, cabe a investigação de ministros do Supremo e a aprovação de um eventual impeachment deles – a punição mais dura que poderia ser aplicada a um ministro do STF. Mas o Senado sempre resistiu a abrir um processo do tipo.
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